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O cartaz do filme, que segundo a Cinemateca Brasileira, é de autoria do diretor teatral Elias Andreato |
O feltro de uma mesa de sinuca. Um pano verde onde sonhos são expostos e a malandragem muitas vezes é exposta ao seu ápice. Dependendo da sorte e do seu talento no taco, você até pode se dar bem. Mas se o azar te pegar, suas chances são mínimas e tudo pode ser perdido. E é mais ou menos sobre isso que 'O Jogo da Vida', filme dirigido em 1977 por Maurice Capovilla e baseado em um conto do livro de mesmo nome, 'Malagueta, Perus e Bacanaço', de João Antônio, ganhador do Prêmio Jabuti de Revelação e Melhor Livro de Contos em 1963, trata. Um filme que talvez não seja tão conhecido, mas que é um dos retratos mais humanos de nosso cinema.
Em 'O Jogo da Vida', acompanhamos uma noite na vida de três malandros do subúrbio de São Paulo - Malagueta (Lima Duarte), um faminto apostador, batedor de carteiras e morador de alguma favela paulistana, Perus (Gianfrancesco Guarnieri), ex-funcionário de uma fábrica de cimento que decide ganhar a vida por meio do seu talento como jogador, e de Bacanaço (Maurício do Valle), um sujeito metido a malandro, mas que se deu mal em seus outros golpes - e sua procura por vítimas, possíveis perdedores, pelos salões de sinuca mais barras-pesadas. Por meio de flash-backs vamos descobrindo quem são esses três homens e o porquê de o destino tê-los levado a esse estilo de vida, em que se ganha e perde com muita facilidade.
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Uma das edições do livro com capa baseada no filme. |
O trio de atores que dão vida a esses anti-heróis paulistanos realizam um trabalho magnífico, obtendo verdade e sensibilidade de maneira certa, sem nunca exagerarem no tom. Lima Duarte, em um papel destinado a Grande Otelo, está chapliniano, Guarnieri é a realidade, o equilíbrio entre os três e Maurício do Valle, um dos símbolos do Cinema Novo, dá seu toque de leveza ao mais obscuro dos personagens principais. O elenco de coadjuvantes se dá ao luxo de ter Joffre Soares como um dos otários que o grupo engana, Antônio Petrin como um malandro que cobra um tipo de pedágio entre os jogadores, Maria Alves como namorada de Bacanaço. A baiana Martha Overbeck Bastos é a irmã de Perus e Myrian Muniz é a companheira de Malagueta, uma figura muito ímpar e mais um dos pontos positivos de 'O Jogo da Vida'. Por esse papel, Myrian recebeu o Kikito de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Gramado de 1978. 'O Jogo da Vida' ainda tem participações especiais de grande jogadores de bilhar da época, como o lendário Carne Frita e Joaquinzinho, o pato da cena final .
Maurice Capovilla já planejava levar o conto para as telas de cinema desde os anos 60, e juntamente com Gianfrancesco Guarnieri escreveu os diálogos, enquanto João Antônio fez uma revisão final. O roteiro, que é inteligentíssimo, se torna ainda melhor através da improvisação do elenco. Capovilla não erra a mão como diretor, colocando-se como mais um espectador da vida desses personagens. Em nenhum momento ele julga ou politiza os personagens. Também não “glamouriza” e nem torna a miséria um espetáculo, mostrando que é possível viver dessa forma marginal. Dib Lufti, hoje afastado do cinema por conta do Mal de Alzheimer, é primoroso com a fotografia, que é na minha opinião, uma das melhores, senão a melhor, do cinema brasileiro, tirando proveito dos neons da já tão depravada Rua Augusta e dos bares da Zona Oeste paulistana. É incrível como em momentos em que a luz é mais escura, como em alguns salões de sinuca, sua fotografia nos transporta para aquele ambiente, dando a sensação de que estamos dentro do filme, observando sob o mesmo ponto de vista que Malagueta, Perus e Bacanaço. Outra coisa bastante agradável em 'O Jogo da Vida' é a música do Maestro Radamés Gnatalli e as duas músicas de Aldir Blanc e João Bosco, 'O Jogador' e 'Tabelas', que realizam um casamento perfeito entre a trilha sonora e a imagem. Segundo Maurice Capovilla em sua autobiografia 'A Imagem Crítica', escrita com base em depoimentos ao crítico Carlos Alberto Mattos, as duas canções foram compostas antes que a dupla assistisse ao filme, durante várias partidas (e algumas cervejas) disputadas entre ele, João Antônio, Aldir Blanc e João Bosco em uma sinuca do Rio de Janeiro.
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Capa do compacto que contém as duas músicas do filme. |
Se o cinema americano tem 'Desafio à Corrupção' como o filme definitivo sobre bilhar e sinuca, não ficamos devendo em nada, porque 'O Jogo da Vida' é um filme sublime, lírico, uma verdadeira poesia cinematográfica, que nos emociona e que 36 anos depois, continua atual, pois nesses últimos tempos, apesar de certos avanços em algumas áreas, a pobreza, as favelas, o desemprego e outros problemas urbanos só se multiplicaram e continuam deixando grande parte da população à margem de uma vida digna, ou seja, é cada vez mais difícil conseguir dar a tacada certeira.
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