São 20h. Meu estômago ronca e resolvo jantar. Vou até a padaria perto do serviço fazer o ritual dos dias úteis. O garçom vem até a mim com um cardápio, mas hoje é desnecessário. Peço um contrafilé acebolado com fritas, já que na hora do almoço resolvi tirar um cochilo ao invés de comer, e um chá gelado de limão com um copo repleto de gelo e uma rodela do fruto. Fico no aguardo. É o tempo em que observo as mesas ao meu lado. Minha mãe me ensinou que é feio olhar os outros clientes de um restaurante, mas é irresistível – inclusive porque tenho a péssima mania de achar semelhanças entre rostos de populares e famosos. É um negócio difícil de controlar, mas um exercício maravilhoso para a memória. Observo a mesa no meu lado direito e há um sujeito que é a cara do ator Ariel Coelho, antigo coadjuvante de filmes do Ivan Cardoso, programas do Chico Anysio e novelas da Rede Manchete. Ele já está morto algum tempo, mas o sujeito sorri e penso: “É o cara”. Logo ele vai embora, com sua mulher e filho, mas eu mal podia imaginar o que ocorreria na sequência.
Adoro os filmes de John Cassavetes, principalmente os que contam com a participação de Ben Gazzara, um dos ícones da geração Actor’s Studio. Para quem não se lembra dele, ele é o Jackie Treehorn de O Grande Lebowski ou o Marcelo nova-iorquino e durão de Forever, do nosso Walter Hugo Khouri. Gazzara também interpretou Bukowski no ótimo Crônica de um Amor Louco. Mas o grande filme do cara, pelo menos para mim, é A Morte de um Bookmaker Chinês, do Cassavetes. Eis que, do nada, uma visão começa a me atordoar. Um homem, justamente a cara do Ben Gazzara entra na padaria acompanhado de duas moças já idosas, mas aparentemente ótimas para a idade. Elas estão vestidas como se voltassem de um baile, enquanto “Gazzara” veste um short dos New York Jets e uma camiseta básica. Foi como ver uma cena do filme, mas passada 42 anos depois, com todos eles envelhecidos. Faltava uma garota, mas quem já assistiu A Morte de um Bookmaker Chinês irá entender. Eles sentam a mesa, passam os olhos pelo cardápio e, como raramente os clientes dessa padaria que eu vou fazem, pedem uma pizza de oito pedaços. O sabor escolhido, para o meu espanto, é a siciliana. Será que há alguma conexão com a máfia na escolha? Talvez. Vou comendo o meu jantar e fazendo algo absolutamente errado, que é ficar de gaiato, só ouvindo a conversa dos outros. Eles falam sobre bailes, dança. Começo a achar que ele é realmente Cosmo Vittelli, o dono de um cabaré de Los Angeles interpretado por Ben Gazzara, um lugar onde muitas garotas dançam e tiram a roupa. Descubro que a dama de cabelo claro é sua namorada e que ela não frequenta o apartamento dele por conta das visitas constantes da filha de Cosmo. Hoje ele não quis beber e optou por um Guaraná Diet. Conheceu os prazeres da típica fruta tropical de nossa terra. Ele fala para a amiga que o acompanha, uma senhora de uns 70 anos e cabelos negros, do dia que saiu com a namorada para comer yakisoba. Desconfio que ele só esteja camuflando sobre a história que ocorreu com o bookmaker chinês.
Peço um café e fico observando mais um pouco, mas os últimos minutos da minha hora de janta estão acabando e preciso voltar para o trabalho. Saio da mesa e não resisto, dou a última olhada para aquela cena de John Cassavetes diante dos meus olhos, incluindo o super closes do diretor. Pago a minha conta e acendo um cigarro com uma única certeza: às vezes é divertido deixar a vida mais estranha que a ficção. Sobre o que aconteceu ao bookmaker chinês? É melhor deixar pra lá.