Pesquisar em Antropoide News

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Coração Valente na cidade

Eram quase 15h30, a chuva não parava, a luz na empresa já tinha apagado duas vezes e o desespero bateu. Tinha medo de não conseguir atravessar a Av. do Estado e ficar ilhado na Zona Sul de São Paulo. Saiu do serviço, arrancou a camisa e com suas botas de couro enfrentou as poças altas que há no Ipiranga. Foi o segundo dia desse pequeno desafio. Enfrentando toda a tempestade, conseguiu atravessar a avenida e observou que o rio estava a ponto de transbordar. Chegou na estação de trem da região, os portões estavam fechados. Colocou sua camisa de volta e junto com outros usuários do transporte público, convenceu a funcionária da CPTM abrir os portões. Uma senhora gritou que ia chamar o Choque, a tropa de elite da polícia paulista, para abrir a passagem, mas ele a avisou e afirmou: "É mais fácil eles baterem na gente, querida!" Conseguiu entrar, mas foi impedido por dois seguranças ao acesso para o seu destino final. A desculpa era que havia confusão e teria que esperar. Nisso, um cidadão mais esperto do que ele, falou que morava do outro lado, depois do outro acesso. Ele ficou furioso e falou para o guardinha que se a regra valia para o cara, também era o correto pra todos. Conseguiu impor algum respeito e o guarda liberou o acesso ao outro saguão. Chegando lá, a situação era tranquila, diferente do relatado, e se agarrou a catraca, como se ela fosse a mulher mais sexy do mundo. Foram longas quatro horas de espera, uma ansiedade interminável, afinal, não havia trem. O saguão lotava mais, seu jeans molhado pesando quilos, nenhuma informação ou aviso da companhia responsável pelo serviço, mas ele viu que, na surdina, duas garotas passaram a catraca. Sua vontade de fumar era imensa e de ir embora dali mais ainda. Em um surto de segundos, ele se abaixou, chutou um dos cavaletes e conseguiu passar, não se importando com os guardas, nem com os funcionários. Se sentiu William Wallace, personagem de Mel Gibson em Coração Valente. Escutou a estação lotada vibrar e como um jogador de rugby, passou pelos guardas. Olhou para trás e viu a multidão fazendo igual. Um momento inesquecível, quase glorioso. Já na plataforma, acendeu seus cigarros e viu um homem que pega o mesmo vagão que ele há quase dois anos iniciar uma conversa pela primeira vez. Em cerca de 20 minutos o trem veio após a longa espera e, surpreendentemente, vazio. Se colocou ao lado da porta e ficou até ás duas estações seguintes, seu destino final."

(Escrito após uma chuva torrencial do ano de 2015)

À Procura

Noites de tormenta
Uma busca a lugar nenhum
Rostos insones pela madrugada
Talvez eu seja mais um
Das nuvens negras lá no céu
Espero clemência e perdão
Me ajoelhando diante do nada
Por um momento de fé ou razão
Autopiedade nunca foi o meu forte
Mas às vezes sei o trapo que estou
Bebendo em todos os bares
Muito menos sabendo quem sou
Arrumo o meu óculos à la Mastroianni
Coloco um cigarro no canto da boca
Procuro nas avenidas escuras
Esbarro em uma multidão louca
E nos becos dos mendigos
Tento te achar com afinco
Mas nada consigo encontrar
Sei que você não está lá
Mesmo sem fé ou razão
Mesmo não querendo o perdão
Tentando acreditar em Cristo
Até mesmo, quem sabe, no destino
Continuo a te procurar
Mas na minha agenda de telefones
Seu número já não está
E cada dia do mês
Em cada sono profundo
Cada vez mais aflito
Fico tentando sonhar
Com o dia em que vou te encontrar

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O ÚLTIMO BAILE (ou ENTRE PASSOS DE BOLEROS E UM FOXTROTE)

 Terça-feira ensolarada e, mesmo com muito calor, consegui dormir bem. Preparo um café no meu pequeno quarto com cozinha. Hoje a tarde tem baile e preciso estar impecável. Me barbeio, aparo o bigode e passo minha roupa. Calça de vinco e sapatos brancos. Uma camisa preta, com algumas estrelas brancas para chamar a atenção na pista. Ainda dou pro gasto. Arrumo os últimos detalhes e mastigo o pão velho e duro que comprei na padaria do picareta de cabelos acaju, o velho Divino, mas, mesmo assim, me sinto ótimo, afinal, ela me esperará com a blusa florida que dei em seu aniversário e o perfume doce que fica impregnado em minhas camisas de seda. Essência de fêmea que domina o meu peito.

Nossa, agora que reparei: já passou da uma e meia e preciso ir ao ponto, são três conduções até o salão. Claro que no caminho há lembranças de outras mulheres, principalmente da minha falecida, mas após três pontes de safena, ver um filho morrer após um acidente, tenho que continuar, viver o presente. Ficar de enlutado, de pijama furado e com um riso triste assistindo os péssimos calouros do Raul Gil numa tarde de sábado não é pra mim, não basta. O sangue ainda pulsa e a ciência desenvolveu o Viagra. Apesar que prefiro o Cialis, é mais seguro. O médico não recomenda por conta do coração, mas prefiro morrer entre os peitos de uma mulher do que em uma cama de hospital rodeado com os poucos amigos que me restam e estão vivos.

Enquanto espero o trem, vejo os jovens, todos cheios de vida. Ah, como era bom. Mais do que bom, era mágico. Era um jovem namorador, que acreditava no amor romântico, daqueles de música do Roberto Carlos. “Eu sou aquele amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores”. É exatamente isso que ainda sou. Aquele jovem menino que pulava o muro do alambique e ficava embriagado durante a madrugada, para fugir correndo e descalço para a escola. O menino que admirava as curvas das panturrilhas grossas da professora Dete, uma jovenzinha de uns 21 anos, loira, linda, moça recém-formada. Ah, como prestei lindas homenagens a “Dona Dete”. Mas isso é passado e, apesar de feliz, não vale ser revisitado. O presente é o que importa. O cheiro daquela que me espera entrando em minhas narinas, ativando sentidos, trazendo gemidos até minha orelha, um movimento especial, sexy, enquanto ela mexe o quadril. Até parece que ao fundo um violonista flamenco sola ao fundo canções gitanas, daquelas feitas para requebrar. “Mercedita” talvez. Deixa isso pra lá. Fumo um cigarro escondido, já que ela não pode sentir o cheiro. Peço o isqueiro emprestado no meio do caminho, assim o vento vai levando o cheiro embora e não fico responsável por nada. Preciso comprar um presente pra minha rosa e acho que esse cordão dourado dá pro gasto. É apenas uma lembrancinha, só pra animá-la a dançar.

Faz dois anos que conheci ela. Tem 70 anos, é um pouco mais nova que eu, mas já puxou a faca pra mim algumas vezes. Sente um ciúme fodido, diz que sou seu homem, seu “nego”, o amor da vida dela. Não acredito nessas coisas, mas acho que devo aproveitar. Ela tava sentada num canto do salão, meio escondida. Fui lá e com toda minha malandragem, puxei pra dançar. A orquestra tocava um bolero. Acho que era Tortura de Amor. Realmente a noite estava calma, do mesmo jeito que o cantor entoava. Tive outras namoradas, fiquei noivo cinco anos com uma, mas quero sossego e, apesar do ciúmes, essa veio pra ficar. Tem umas donas lá que já me ofereceram casa, cama, diziam que pagavam tudo, mas não precisava e disse não, logo conheci ela. Perdeu tudo faz um tempo. O barraco foi derrubado pela prefeitura e eles não deram nenhum centavo. Dei cama, guarda-roupa e uma tábua de passar. Os armários da cozinha consegui com um amigo, Pago água de coco e guaraná, ela não bebe e eu parei faz tempo também. Viaja comigo sempre. Fomos em um baile em Salto. Ela até deixou uma carta pro vizinho dizendo que qualquer coisa, tava lá. Me acordava com café na cama, beijava, abraçava. Coisa louca, que me deixa cheio de vida, sabe? E dançamos a noite toda. O que a orquestra tocava, estávamos lá. Principalmente se fosse alguma do Ray Conniff.

Mas mil perdões, rapaz. Você vai trabalhar já e chegamos aqui na porta do baile. Preciso entrar, sabe como é, sempre pode ser o último. E não se pode desperdiçar um bom foxtrot, já que a vida é feita de danças, de movimentos contínuos, até mesmo intensos. O importante é manter o ritmo, o “dois pra lá e dois pra cá”, sempre com leveza e alegria, mesmo se errar. Sempre é possível enganar, rapaz. Fazer a dança certa. Mas me dá licença outra vez, o baile vai começar e ela tá me esperando, toda cheirosa, maquiada e hoje quero paz, ternura, como o velho romântico disse em uma canção. Bom trabalho e fica com Deus.

(PARA TODOS AQUELES QUE ESTÃO POR AÍ, PERDIDOS EM ALGUM BAILE DA VIDA)





segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A serenata de São Diego

Algumas músicas beiram a perfeição. É o caso de San Diego Serenade, presente em The Heart of Saturday Night, clássico de Tom Waits. Acho que se você ouvir, vai compartilhar do mesmo sentimento que eu sinto. A letra e música abaixo:


Nunca vi a manhã até ficar acordado a noite toda
Nunca vi a luz do sol até você apagar a luz
Nunca vi minha terra natal até ficar longe por muito tempo
Nunca ouvi a melodia até precisar da canção

Nunca vi o meio-fio a até te deixar pra trás
Nunca soube que precisava de você até estar encrencado
Nunca disse "Eu te amo" até te amaldiçoar em vão
Nunca senti o meu coração até quase ficar insano

Nunca vi a costa leste até mudar-me para o oeste
Nunca vi o luar até ele brilhar fora do seus seios
Nunca vi o seu coração até tentarem roubá-lo, roubá-lo de mim
Nunca vi suas lágrimas até escorrerem pelo seu rosto

Nunca vi a manhã até ficar acordado a noite toda
Nunca vi a luz do sol até você apagar a luz
Nunca vi minha cidade natal até ficar longe por muito tempo
Nunca ouvi a melodia até precisar da canção

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

O banqueiro

E quando bate o desespero
o que fazer ou quem chamar?
Se o pagamento cai inteiro
e certas contas tem que pagar.
Não adianta sofrer, muito menos chorar.
Você pode beber, sair correndo,
mas uma hora dessas, o tempo vem,
vai te pegar.
E todo sofrimento, que sua alma,
pobre e cansada, vai aguentar.
É de janeiro a janeiro, o dia inteiro,
com o sol comendo,  meio sem jeito,
que a tristeza aparecerá.
E sem dinheiro,  com fome
e faltando  emprego,  o banco vem
te assaltar.
Não adianta sofrer, muito menos chorar.
Você pode beber, sair correndo,
mas o banqueiro, ah, ele vai te cobrar.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Jogadas

Descendo a rua da sua casa
Sentindo cada músculo 
das minhas pernas.
Tentando descobrir
qual é o próximo passo.
Não sou que nem você,
que consulta mágicos, índios,
bárbaros e advogados.
Não tenho fé, nem acredito no destino.
Uso o vento como guia,
Deixo o coração dizer qual é o
meu caminho.
E, enquanto desço a sua rua,
tento compreender o nosso encontro.
Um momento de sorte,
repleto de jogos obscuros.
Um encontro de loucos
em uma noite sem fim.
Acabei no seu quarto.
Confesso: tava um trapo.
Mas você me trouxe cerveja,
deu um sorriso tímido,
Tirou a roupa, me deu um abraço.
E, como naquela música do Van Morrison,
Fizemos amor enquanto a lua dançava.
Você dizia coisas com os olhos,
me apertava.
E, passando os dedos sobre sua pele,
o seu cheiro de laranja exalava.
Mas agora, voltando a realidade,
Tô na porta da sua casa.
Basta você abri-la.
Tá na hora da próxima jogada.