Terça-feira ensolarada e, mesmo com muito calor, consegui dormir bem. Preparo um café no meu pequeno quarto com cozinha. Hoje a tarde tem baile e preciso estar impecável. Me barbeio, aparo o bigode e passo minha roupa. Calça de vinco e sapatos brancos. Uma camisa preta, com algumas estrelas brancas para chamar a atenção na pista. Ainda dou pro gasto. Arrumo os últimos detalhes e mastigo o pão velho e duro que comprei na padaria do picareta de cabelos acaju, o velho Divino, mas, mesmo assim, me sinto ótimo, afinal, ela me esperará com a blusa florida que dei em seu aniversário e o perfume doce que fica impregnado em minhas camisas de seda. Essência de fêmea que domina o meu peito.
Nossa, agora que reparei: já passou da uma e meia e preciso ir ao ponto, são três conduções até o salão. Claro que no caminho há lembranças de outras mulheres, principalmente da minha falecida, mas após três pontes de safena, ver um filho morrer após um acidente, tenho que continuar, viver o presente. Ficar de enlutado, de pijama furado e com um riso triste assistindo os péssimos calouros do Raul Gil numa tarde de sábado não é pra mim, não basta. O sangue ainda pulsa e a ciência desenvolveu o Viagra. Apesar que prefiro o Cialis, é mais seguro. O médico não recomenda por conta do coração, mas prefiro morrer entre os peitos de uma mulher do que em uma cama de hospital rodeado com os poucos amigos que me restam e estão vivos.
Enquanto espero o trem, vejo os jovens, todos cheios de vida. Ah, como era bom. Mais do que bom, era mágico. Era um jovem namorador, que acreditava no amor romântico, daqueles de música do Roberto Carlos. “Eu sou aquele amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores”. É exatamente isso que ainda sou. Aquele jovem menino que pulava o muro do alambique e ficava embriagado durante a madrugada, para fugir correndo e descalço para a escola. O menino que admirava as curvas das panturrilhas grossas da professora Dete, uma jovenzinha de uns 21 anos, loira, linda, moça recém-formada. Ah, como prestei lindas homenagens a “Dona Dete”. Mas isso é passado e, apesar de feliz, não vale ser revisitado. O presente é o que importa. O cheiro daquela que me espera entrando em minhas narinas, ativando sentidos, trazendo gemidos até minha orelha, um movimento especial, sexy, enquanto ela mexe o quadril. Até parece que ao fundo um violonista flamenco sola ao fundo canções gitanas, daquelas feitas para requebrar. “Mercedita” talvez. Deixa isso pra lá. Fumo um cigarro escondido, já que ela não pode sentir o cheiro. Peço o isqueiro emprestado no meio do caminho, assim o vento vai levando o cheiro embora e não fico responsável por nada. Preciso comprar um presente pra minha rosa e acho que esse cordão dourado dá pro gasto. É apenas uma lembrancinha, só pra animá-la a dançar.
Faz dois anos que conheci ela. Tem 70 anos, é um pouco mais nova que eu, mas já puxou a faca pra mim algumas vezes. Sente um ciúme fodido, diz que sou seu homem, seu “nego”, o amor da vida dela. Não acredito nessas coisas, mas acho que devo aproveitar. Ela tava sentada num canto do salão, meio escondida. Fui lá e com toda minha malandragem, puxei pra dançar. A orquestra tocava um bolero. Acho que era Tortura de Amor. Realmente a noite estava calma, do mesmo jeito que o cantor entoava. Tive outras namoradas, fiquei noivo cinco anos com uma, mas quero sossego e, apesar do ciúmes, essa veio pra ficar. Tem umas donas lá que já me ofereceram casa, cama, diziam que pagavam tudo, mas não precisava e disse não, logo conheci ela. Perdeu tudo faz um tempo. O barraco foi derrubado pela prefeitura e eles não deram nenhum centavo. Dei cama, guarda-roupa e uma tábua de passar. Os armários da cozinha consegui com um amigo, Pago água de coco e guaraná, ela não bebe e eu parei faz tempo também. Viaja comigo sempre. Fomos em um baile em Salto. Ela até deixou uma carta pro vizinho dizendo que qualquer coisa, tava lá. Me acordava com café na cama, beijava, abraçava. Coisa louca, que me deixa cheio de vida, sabe? E dançamos a noite toda. O que a orquestra tocava, estávamos lá. Principalmente se fosse alguma do Ray Conniff.
Mas mil perdões, rapaz. Você vai trabalhar já e chegamos aqui na porta do baile. Preciso entrar, sabe como é, sempre pode ser o último. E não se pode desperdiçar um bom foxtrot, já que a vida é feita de danças, de movimentos contínuos, até mesmo intensos. O importante é manter o ritmo, o “dois pra lá e dois pra cá”, sempre com leveza e alegria, mesmo se errar. Sempre é possível enganar, rapaz. Fazer a dança certa. Mas me dá licença outra vez, o baile vai começar e ela tá me esperando, toda cheirosa, maquiada e hoje quero paz, ternura, como o velho romântico disse em uma canção. Bom trabalho e fica com Deus.
(PARA TODOS AQUELES QUE ESTÃO POR AÍ, PERDIDOS EM ALGUM BAILE DA VIDA)
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