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quinta-feira, 6 de junho de 2013

Cão sem osso – Carta aberta para uma cadela

O ritual sagrado de ir até a escada e esperar minha mãe voltar do trabalho
Os dois últimos dias foram difíceis e você sabe a razão. Na verdade, desde o ano passado tenho recebido alguns golpes baixos. Primeiro foi minha tia-avó, Apparecida Durante, a Tia Cida (ou “Palonça”), que foi embora, agora você. É muita sacanagem para menos de dois anos. Quando a Tia faleceu foi foda, mas ao mesmo tempo, libertador.  Até hoje fico emocionado quando lembro dela e aliviado, porque sei que ela se foi por vontade própria. Cansou-se das dores na coluna e se entregou de vez. Ela morava com a minha avó materna, Dona Dirce, e com meu tio Abel.  De vez em quando vou almoçar lá, mas confesso que não tenho coragem de subir no quarto da “Palonça”. Acho que tenho medo de quebrar o encanto que era ir lá e receber aquele beijo babado, mas extremamente carinhoso que só ela me dava. Eu vou subir, abrir a porta e ela não vai estar, então prefiro fingir que a qualquer minuto ela vai descer a escada e irá sentar na cadeira branca que fica estrategicamente colocada ao lado do sofá da sala. Mas e com você, como faço?


Sabe, hoje eu levantei, subi as escadas e não vi os seus jornais, já fiquei chateado. Aí fui ao quarto e foi fatal: você não estava lá, no seu cantinho, enrolada em seus panos velhos. Caí na real e percebi que nunca mais ia poder passar a mão na sua cabeça, bater no seu cobertor e te ver estender as patas, sempre abanando o rabinho. Senti um tremendo vazio e chorei muito, feito criança. Logo eu que sempre julguei idiota alguém chorar pela morte de um cão. Confesso que mudei de opinião e percebo que o imbecil era eu. Ainda muito triste, me sentei no sofá e liguei a televisão, mas quando senti a falta do seus potes de ração e água, as lágrimas voltaram a cair. Nem me deu vontade de almoçar, afinal, não tinha alguém para comer as sobras do meu prato ou pegar os pedaços de carne que eu arremessava e iam direto para a sua boca.


Fui sentindo sua falta durante o dia, ia à cozinha e não via aquele seu olhar desconfiado, pensando no que eu estava indo fazer lá.  Ficava lembrando as vezes em que te deixava em casa sozinha e ia resolver meus problemas ou comprar algo aqui por perto e a senhora, propositalmente, dava aquele “mijão” na cozinha. Aí eu sempre te dava uma bronca, te ignorava e você me olhava de forma cínica, meio que querendo dizer o seguinte: “Você me deixa aqui sozinha, me abandona e eu nunca fiz isso contigo, então fiz xixi aí mesmo só pra você limpar, seu trouxa.”


Nas conversas com amigos e parentes, ficamos lembrando suas histórias. Lembra quando você era novinha, mexeu em minhas coisas, pegou uma nota de R$50,00 e a rasgou? Eu fiquei possesso, ameacei te dar umas cintadas, mas não tive coragem. Mesmo assim Greta, você tinha o sangue ruim e dando altos pulos, avançava em mim. Outra memória que me veio, foi quando passamos juntos uns dias na casa da minha avó Cleide e você cutucou os vasos dela. Ela não se esqueceu disso e me falou que chorou ao saber de sua partida. Mas de tudo que você fez, o que eu não vou esquecer foi o dia em que você salvou minha mãe. Se houve algum tipo de missão destinada para ti, sem dúvida foi isso. Sempre alerta, você ouviu o estralo do estuque e começou a latir, acordando a dona Sandra. Foi só vocês duas saírem do quarto e o teto desabou. Só por essa atitude, já sou grato eternamente.

Bem, por mim ficava o dia todo falando desses quase 14 anos juntos, de quanto estou sentindo a falta do barulho dos seus passinhos, de suas artes e principalmente da sua companhia, mas tenho que te deixar em paz agora. Ontem, para aliviar um pouco essa dor, escutei uma música que se chama Old Shep. É a história de um menino e seu pastor-alemão. É uma canção linda. Os dois últimos versos dizem o seguinte: “Mas se cães têm um céu, há uma coisa que eu sei. O velho Pastor tem um lar maravilhoso”. Sou agnóstico, não tenho uma crença específica, mas pode ser que haja um paraíso reservado para os cachorros e imagino que você já esteja nesse local, doida para voltar. Mas não se preocupe com a gente, viu? Eu, dona Sandra e a Dami estamos aqui, como cães sem osso, tentando nos adaptar com esse silêncio e vazio que a nossa casa ficou sem tua presença, com esse mundo mais triste sem sua alegria e esperteza.

Preciso te deixar em paz e também ficar em paz, mas obrigado pelos anos de convívio, pelas alegrias, amor, afeto, companheirismo e principalmente por sua lealdade conosco. Desculpe-me pelas broncas, xingamentos, brincadeiras fora de hora e por ter te deixado sozinha em alguns momentos ou não ter o hábito de te levar para passear. Tudo que eu pude fazer, eu fiz. Obrigado Greta, se cuida e apronta muito por aí, mas saiba que eu estou morrendo de saudades. Um beijo, igual àqueles que eu te dava na testa. Se um dia resolver voltar, o que acho bastante improvável, as portas da nossa casa sempre estarão abertas. Fique bem sua “cadela”. Qualquer dia, nos vemos por aí...


 
A última foto

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