O primeiro LP de Elvis, que é também o primeiro disco de rock'n'roll que ganhei na vida
Acho que foi em julho de 1996, numa segunda-feira. Estava assistindo uma entrevista de Eli Corrêa com o famigerado Padre Quevedo em um final de tarde. Naquele dia o Padre demonstrava em seu próprio corpo alguns métodos usados pelos ditos charlatões, inclusive atravessando uma agulha pela pele do seu pescoço. Uma tremenda curiosidade pra um moleque de seis anos. Entre uma demonstração e outra, o intervalo comercial rolou. A locução dizia que naquela noite haveria um “Festival Elvis Presley”, começando com a exibição de O Prisioneiro do Rock. Confesso que aquela imagem em preto e branco na velha televisão de tubo com a imagem granulada, além do som de Jailhouse Rock me hipnotizou. Precisava assistir aquilo. Certa ansiedade tomou conta de mim. Não via a hora de chegar às 22h. Estava na casa dos meus avós, então a liberdade era total, nem precisava ir pra cama cedo. Fiquei ligado na telinha, até que a sessão começou. Vince Everett, o personagem de Elvis, matava um homem a socos logo na primeira cena e ia pra cadeia. Precisava ver aquilo até o final. Não demorou muito e logo as canções escritas por Jerry Leiber e Mike Stoller começaram a rolar. Escutar a voz daquele cara e a guitarra de Scotty Moore foi uma porrada que tomei na cabeça e no coração. Nunca tinha ouvido nada igual. Era simples, verdadeiro, cheio de atitude e melhor do que todas aquelas ondas infantis que rolavam na época. Era rock’n’roll, ou seja, música de verdade. Uma sensação única, como o primeiro orgasmo ou aquele cigarro roubado do maço de alguém que você fuma escondidinho e relaxa o seu corpo todo. Pura mágica. Assisti o filme até o final, inclusive a antológica sequência de Jailhouse Rock. Ali decidi que queria ser igual aquele cara. Acompanhei os filmes que passaram nas semanas seguintes. Louco por Garotas, Com Caipira não se brinca, Viva um pouquinho, ame um pouquinho, Joe é muito vivo e o maravilhoso Elvis Triunfal. Tirando o último citado, hoje acho todos ruins mas sempre acabo assistindo e sou levado aos meus tempos de criança. Criança tomada pelo Rock e pela “Elvismania”.
Naquele mesmo ano, perto do natal, meu pai arrumou um emprego após um difícil período desempregado. Como presente pra família, comprou nosso primeiro rádio com tocador de CD e, curiosamente, me presenteou com aquele antológico disco inicial de Elvis na RCA, o mesmo que tem Blue Suede Shoes, Money Honey, Blue Moon e Tutti Frutti. Dia e noite escutava aquilo e acho que meus vizinhos me detestavam por isso. No mesmo período, descobri uma rádio pirata onde vários sons dos anos 50 eram tocados. O apresentador tinha um acervo fabuloso e descobri que podia ligar e pedir a música que quisesse. Foi através desse programa que conheci Jerry Lee Lewis, Chuck Berry, Johnny Cash e todos aqueles caras fodões que gravaram com Sam Phillips na Sun Records. Em tempos anteriores ao You Tube, era só ligar, pedir a canção e preparar uma fita K7 pra gravar - tenho algumas delas até hoje. Dali em diante, meus heróis deixaram de ser aqueles dos desenhos animados bobos. Eu queria tocar piano como Jerry Lee e fazer os movimentos de karate que o Elvis fazia no palco.
Os anos foram passando, e na escola eu sempre era conhecido como o menino fã do Elvis. Em 2005, um professor muito querido pediu para eu levar todo o material que tinha sobre Elvis. Discos, livros, revistas, CDs. Para minha surpresa, ele anuncia que levará um cover de Elvis na escola. Até hoje alguns amigos me tiram sarro do momento em que fui convidado pra cantar Tutti Frutti com o cara e confesso: me emocionei pra caralho, afinal, nunca poderia ver um show do verdadeiro Elvis (talvez algum dia no céu ou no inferno).
Hoje, 16 de agosto de 2017, é o aniversário da (possível) morte do eterno “Rei”. São 40 anos sem o cara. O dia em que ele deixou o prédio e virou um mito contemporâneo. Sem a música desse cara, não sei os caminhos que a minha vida teria tomado. Talvez teria virado um desses caras que chapam o coco em balada sertaneja ou que acreditam no que o Datena fala na televisão. A música de Elvis Presley foi o trilho para outras descobertas. Uma chave que destravou a minha mente. Sem ela não teria descoberto o rockabilly, o blues, algumas coisas literárias que eu adoro, toda uma cultura pop, além de todo suingue e vigor que o rock’n’roll deixa em nossas vidas. Quem sabe nesta noite fria de agosto Elvis não esteja vivo, cantando em alguma espelunca por aí, fazendo senhorinhas balançar o quadril durante a madrugada e rindo de tolos emocionados como eu. Se tiver, obrigado pelos ensinamentos, Rei. Um dia te vejo em Memphis!
Dennis Hopper ainda estava incorporado com o personagem do fotojornalista de Apocalypse Now quando chegou à Alemanha. Tinha três câmeras penduradas em seu pescoço e nem se lembrava do motivo de estar lá, muito menos quem era Win Wenders, o diretor que havia feito o convite para Hopper estrelar O Amigo Americano. Dennis não tinha decorado o texto e vivia a base de cocaína e álcool. A primeira cena rodada foi na oficina do personagem de Bruno Ganz - ator famoso por ter feito Hitler em A Queda. Sem saber suas falas, mas sabendo do que se tratava, Hopper improvisou. Ganz, que é alemão, não entendia o que Dennis tentava dizer. Wenders resolveu gravar a cena mais uma vez. Novamente Hopper improvisou e Ganz foi ficando mais nervoso. Em uma terceira tomada e um terceiro improviso, Bruno não aguentou. Deu um soco no meio do nariz de Hopper. Enquanto o melado descia, Dennis revidou e os dois atores foram ao chão. Wenders paralisou a filmagem, e todos os trabalhos seriam retomados no dia seguinte. Nem Hopper ou Ganz apareceram e o diretor, num momento de desespero, cancelou as filmagens pelo segundo dia consecutivo. No terceiro dia, Win Wenders tem uma surpresa: Dennis Hopper e Bruno Ganz chegam completamente bêbados, rindo muito e cantando. A partir daquele momento Wenders consegue rodar seu filme e Hopper toma um drink de vez em quando. Essa é uma das histórias contadas no ótimo Dennis Hopper: Por Trás da Lenda, documentário lançado no ano passado.
Apesar do título fraquinho em português, através do depoimento de gente como Michael Madsen, o próprio Win Wenders, Julian Schnabel, Isabella Rossellini e outras figuras lendárias, temos a possibilidade de entender um dos artistas mais perturbados e visionários de sua geração. Hopper esteve presente em momentos cruciais da história americana. Fotografou Martin Luther King, Paul Newman, Andy Warhol, entre outras figuras marcantes de nosso passado recente. Escreveu poesias, foi coadjuvante de Marlon Brando, James Dean e John Wayne. Dirigiu o grande clássico do cinema independente americano, o fantástico (e meu filme preferido) Sem Destino - o marco cinematográfico da contracultura. Ficou chapado de ácido na selva e sumiu por quatro dias enquanto filmava Apocalypse Now e foi proibido de se hospedar em todos os hotéis da Austrália.
A vida, como Hollywood, deu uma segunda chance pra Dennis, mesmo ele insistindo em ser um porra-louca. Após ter recebido o “não” de Willen Dafoe e Richard Bright, David Lynch ofereceu a Hopper o papel de Frank Booth (foto) em Veludo Azul. Não é necessário dizer que o cara roubou o filme. A partir das indicações que recebeu por sua interpretação, durante os 10 anos seguintes, Dennis foi o psicopata preferido da indústria cinematográfica. Fez várias merdas, como Super Mario Bros, Waterworld e Velocidade Máxima. Nos últimos 23 anos de sua vida, resolveu ficar sóbrio. Dizem que era um saco entrevistá-lo nesse período, afinal, ele queria provar que era o easy rider de outrora. Em 2010, Hopper morreu de uma forma triste, como mostra suas últimas imagens. Quem diria. Nem mesmo um dos últimos caras rebeldes conseguiu lutar contra um câncer na próstata, o que deixa claro a fragilidade de todos nós diante da grandeza da vida.
Até hoje há diversos preconceitos com a música popular, principalmente com aquelas que surgem nas periferias dos centros urbanos ou nos cafundós sertanejos desse nosso imenso país. Para muitos, não há valor cultural nesse tipo de canção ou poesia, mesmo estando ali nossas principais raízes culturais. Tem até tentativas de se criar leis para evitar a execução de determinado gênero. Isso me faz lembrar do samba de gafieira e de Waldick Soriano - que mesmo depois de morto, é pouco reverenciado.
Talvez a figura do macho à moda antiga, assim como declarações demonstrando seu pensamento político contribuíram para isso,mas como interprete e poeta do sertão, é preciso tirar o chapéu de cowboy para ele. Nos anos 70, Waldick causou furor em uma boate da alta classe carioca, que esperava ver um verdadeiro circo dos horrores e acabou se rendendo a um dos mais finos interpretes de nossa música, com um domínio de palco extremo, além daquela figura cafajeste e sinistra. O cara matou à pau e virou amante de uma das dondocas da high society carioca presente na ocasião.
Os seus grandes momentos em disco, pelo menos para mim, são "Tortura de Amor", "Paixão de um Homem", "Eu também sou gente" e "Eu vou ter sempre você",versão de Antônio Marcos (o grande poeta de São Miguel Paulista) para um velho standart gravado originalmente por Alice Faye e imortalizado por Nat King Cole. Se você dúvida, veja esse vídeo dirigido por Patricia Pillar um pouco antes da morte de Waldick. A saúde não era mais a mesma, mas a voz, a voz era única e sensacional.
Loira, magra, alta, sexy e perigosa. Essa talvez seja uma boa descrição de Anita Pallenberg, um dos grandes ícones da beleza feminina nos anos 60. Italiana de nascença, mas com o sangue germânico fluindo nas veias, Anita participou de toda efervescência cultural daquela época. Era super-modelo antes do termo existir. Estava em Roma quando Federico Fellini filmou "A Doce Vida". Se tornou amiga de Pier Paolo Pasolini. Atuou no cult "Barbarella" e foi uma das frequentadoras assíduas da Factory de Andy Warhol. Era uma intensa conhecedora de artes. Se não bastasse isso, ela é uma das principais musas do Rock'n'Roll. Anita foi namorada de Brian Jones, o fundador dos Rolling Stones, e a primeira esposa de Keith Richards - sujeito que dispensa apresentações.
Brian Jones tinha fama de ser um escroto com mulheres. Engravidou várias, abandonou os filhos e gostava de dar porrada nas parceiras. Isso não deu certo com Anita. Segundo Keith Richards, que presenciou algumas tentativas de agressão, ela não deixava barato. Metia o braço sem dó em Jones, que sempre aparecia com um olho roxo por aí. A relação foi desgastando e Brian cada vez mais se isolava nas drogas - ele se achava um gênio. O amigo Keith foi tentar salvar seu parceiro de banda, viu que não tinha jeito e se apaixonou pela mulher do cara, que correspondia na mesma medida. Brian logo apareceria morto em uma piscina, já Anita e Keith resolveram embarcar numa das mais loucas viagens de amor e heroína da história.
Foi ela que inspirou Richards a escrever os primeiros versos de Gimme Shelter, talvez o maior clássico dos Stones após Satisfaction. Keith estava em seu apartamento, puto da vida e com a certeza que Mick Jagger tentava seduzir a sua mulher. Eles estavam filmando "Performance", um filme esquecível de 1969, num total clima de loucura, tensão e lisergia. O diretor Donald Cammell forçava uma atmosfera sexual entre Jagger e Anita, enquanto Keith pensava em diversas hipóteses. Foi aí que surgiu a frase “ Uma tempestade se aproxima ameaçando minha própria vida hoje”. O resto, incluindo o possível affair entre Pallenberg e Mick, virou história e até mesmo uma briga recente. Em sua autobiografia, Keith fala que Jagger pode até ter dormido com sua ex, mas como tem um pintinho pequeno, não caiu nas graças da fervorosa Anita. Tal descrição íntima rendeu um pedido de desculpas na imprensa por parte de Keith.
Anita teve três filhos com Richards, inclusive uma menina que faleceu 10 semanas após o parto. Durante e depois do casamento, foi se afundando cada vez mais na heroína. Em 77 um namorado de 17 anos se matou em sua cama. Nos anos 80 foi para clínicas de reabilitação. Na década de 90 foi estudar moda. Mas a heroína, muito além dos dentes, cobrou seu preço. Além de várias recaídas, diversos problemas no quadril forçaram o uso de uma bengala. A Hepatite C também fez parte do dia a dia, assim como o AA. Hoje Anita se foi. A bateria do seu relógio acabou. O mundo não só perdeu um de seus grandes ícones fashions, perdeu uma mulher forte, que chutou várias portas contra a caretice. Anita era a musa mais selvagem da história do Rock'n'Roll e sempre será, como uma tempestade vindo ameaçar a vida de alguém.
Há quase 60 anos Tom Jones circula por aí, exibindo suas correntes de ouro, seu peito cabeludo e emanando sua poderosa voz. Dizem que nos velhos tempos, Tom tinha um apetite sexual voraz, mesmo sendo casado durante esses quase 60 anos que circula pelos palcos do mundo - sua companheira faleceu no ano passado. Cassandra Peterson, a exuberante Elvira - A rainha das trevas, disse que foi desvirginada por Tom. Mamie Van Doren, uma das primeiras coelhinhas da Playboy e sex-symbol dos anos 50, disse que provavelmente Jones usa meias em suas partes íntimas para dar uma camuflada. Os jornais, na época da morte de Melinda Rose Woodward,a Sra. Tom Jones, adoravam dizer que ele era um homem de muitas mulheres, mas que só amou verdadeiramente uma, mas isso não vem ao caso.
Nos últimos 30 anos Tom Jones reinventou-se. Deu uma nova roupagem a Prince, voltou a suas raízes do blues, participou de um episódio de Os Simpsons e hoje é jurado da versão britânica do The Voice. Na década de 60 o homem foi um sucesso e só por Delilah, a canção mais entoada em pub irlandês após a bebedeira, já tem seu lugar na história da música. Mas isso não bastava para Jones, que sempre teve um sonho: queria ser Elvis Presley. Nos anos 70 os dois chegaram a dividir o palco em Las Vegas e viviam se visitando nos camarins. Há uma cena no documentário Elvis é Assim onde acompanhamos Elvis rindo após receber um telegrama de Tom. Presley era o maior astro de Vegas. Estava acima de Sinatra, Dean Martin, Barbra Streisand ou qualquer outro cantor que se apresentasse no deserto de Nevada. Talvez Tom nunca tenha superado isso, mesmo hoje, sendo Cavaleiro do Império Britânico, um nobre a serviço de sua Majestade. Mesmo virando Sir, Jones continua sendo um servo da Rainha Elizabeth, enquanto Elvis é eternamente o rei de um negócio bem maior do que todo o Reino Unido e a União Europeia juntos - como nos tempos posteriores ao Brexit. Elvis representa uma coisa mais gigantesca até que o Estados Unidos e todo seu poder bélico. Elvis é o rei do Rock’ n’ Roll, o ritmo supremo. Seus discos ainda são os campeões de vendas, sua obra é ainda é o principal catálogos da história da música e seus súditos continuam nascendo dia após dia, sempre alimentando o grande sonho de visitar Graceland, a incrível mansão de Elvis, hoje o segundo museu mais visitado dos EUA, só perdendo para a Casa Branca. Mesmo com uma morte extremamente babaca, Elvis ainda é a principal referência do que é o sonho americano. Tom Jones é do País de Gales e nunca terá todo aquele rhythm and blues sulista que Elvis carregava nas veias, apesar de todo esforço e às vezes se sair muito bem.
Elvis e Priscilla nos anos 70
Uma coisa Tom Jones fez melhor que Elvis: manteve-se vivo. Em 2015 lançou o álbum “Long Lost Suitcase”, cuja a canção de trabalho tem o nome de “Elvis Presley Blues”. Tom também curou suas tristezas da viuvez e arranjou um novo amor: Priscilla Beaulieu Presley, uma jovem garotinha que Elvis encontrou em uma base aérea da Alemanha e a principal administradora de seu espólio. Eu não sei onde Elvis está, mas se ele estiver vivo ainda, deve estar dando tiros em aparelhos de TV LCDs com sua pistola banhada a ouro. Mas ele ainda é o Rei e é isso que importa.
Das lentes do meu Ray-Ban observo essa cidade indigesta. Gosto de ver tudo mais escuro, sentindo o ar seco e sujo adentrando entre os pelos das minhas narinas. Acho que já perdi a esperança ou talvez tenha me acostumado com fracassos, mas fico feliz quando vejo o cara babaca e gordo que tá do meu lado. Ele conta pra um colega que vai viajar com a namorada e o quanto ama ela e atende seus desejos. É um dependente e isso é triste. Talvez algum dia ele apareça numa capa de jornal, com os dentes cerrados e tendo um punhado de sangue nas mãos. “Homem mata mulher a facadas e falha na hora de se matar”, que manchete brega e barata. Esse cara é um desses, perderia tudo dizendo que foi por amor. Só posso respirar aliviado, não pertenço a essa espécie, acho que parei de acreditar no amor. Mas um dia ele pode me atingir como um raio bem no meio da testa e aí vou me foder. Nunca sabemos quando tempestades como essas vão cair. Mas não faz meu estilo. Tô muito tempo andando nos trilhos, brincando com a sorte e arriscando baixo. Nem sou muito fã de baralho. Tenho alguns lugares pra me agarrar, algumas camas pra passar uma noite sem sono. Não sou um solitário como pensam por aí - nem tão durão. Só não gosto de me molhar na chuva e pelo rumo das coisas, a chuva será mais escura daqui por diante. Tempos difíceis estão perpetuando. É bom não esquecer do guarda-chuva. Sem ele fica impossível de se acender um cigarro e pelo céu nublado, vem uma chuva negra por aí.
72 anos de genialidade, sobrevivência e superação. Eric Clapton faz aniversário hoje e merece todos os parabéns - mesmo sendo o primeiro EMO da porra toda.
Nesses 72 anos, Crossroads talvez seja o ponto alto de Clapton como guitarrista. Ninguém conseguiu fazer uma versão tão intensa de como a de Eric no Cream. Nem mesmo Robert Johnson, o autor da música, é tão visceral assim. Pura porrada e genialidade. Não é à toa que o cara é conhecido como Deus por aí e Crossroads é o nome do centro de reabilitação e festival promovido por ele!
* Quem quiser conhecer o lindo trabalho que Clapton faz em seu centro de recuperação, com base nos 12 passos do AA, é só entrar aqui. Em sua autobiografia, muito focada em sua luta contra o álcool, Eric fala da ideia, desenvolvimento e propósito do Crossroads, sem dúvida nenhuma, um dos principais orgulhos de sua vida: http://crossroadsantigua.org/
Era uma daquelas tardes quentes de sábado, com solos de guitarra psicodélicos perdidos no ar enquanto o sol saia de cena. Dava pra escutar em lugares longe dali. Era essa a sensação que Pedro sentia em seu peito. Sons de trovão, com uma chuva doce e ácida. Foi assim que o amor se instalou em seu coração. Ele tava perdido, fodido, foi assim que começou. Os olhos dela eram intensos, desafiadores, como Muhammad Ali gingando no ringue, abrindo a guarda, pronto pra encaixar um cruzado ou um gancho certeiro. Mas ele nunca tinha experimentado isso e o gosto não era amargo. Nem o ar que ele roubava enquanto beijava a doce dama por quem tinha se enamorado. O começo de algo, o fim de outra era. Como a dança em um musical esdrúxulo ou uma viagem alucinógena que teve em outros tempos, ele sabia e dizia o seguinte: “não vai durar”. Ela era forte demais pra ele, muito dona de si, realmente livre. Pedro coitado, era muito responsável em seu trabalho de merda e, mesmo detestando, jamais conseguiria ser livre e ter os pés no chão como ela. E Pedro sabia disso. Mas você vai dizer que Pedro não sabia viver o momento e se adiantava o tempo inteiro. Talvez você tenha razão, mas Pedro tinha muito medo de certas emoções, principalmente a falta de razão que uma paixão fulminante leva até um coração. E, bobo que era, Pedro disse não. Que final triste pra uma história que nem começou. Mas Pedro não sabia lidar com certas coisas do coração. Por isso, idiotamente e inocentemente, Pedro disse não. Não se pode falar não pra certos sentimentos que nos despertam a paixão. Mas ela entendeu, seguiu seu caminho e pensou: “ele tem medo da desilusão. Não sabe viver os sentimentos que vivem nas ligações internas de qualquer coração.” Ela estava certa. Pedro não estava pronto, mas um dia vai estar. Quando esse dia chegar, Pedro vai estar livre pra fazer amor e parar de chorar.
Não sou artista
Não faço arte
Não sou escritor
Muito menos jogador
Não sou pugilista
Sempre fujo de qualquer briga
Não bebo
Só tomo um trago
Não faço amor
Apenas dou uns amassos
Não me apaixono
Apenas tiro proveito dos minutos com você
Não sei fingir, disfarçar a dor
Faço peças, mas não sou ator
Talvez seja o drama de um bom poeta
Ou o suor de algum trabalhador
Não falo francês
Mas sussurro em seu ouvido
Com sotaque latino
Em meu bom português
Danço com o vento
Mas continuo isento
Quando o assunto é política
Falo aquilo que penso
Mas quem eu sou
Me diga, por favor
Se sou a ponte, o caminho, o seu amor
Se sou a água, a onda que bate no teu corpo
Um oceano aberto, mas próximo a um deserto
Onde os sentimentos não dizem nada
Onde o que vale é a palavra falada
Algum olhar, uma piscadela
A dança das bailarinas peladas
Que giram suas pernas cheias de graça
Olhando para os velhos que ficam sentados na praça
Ou os velhos discos do garoto que espera o ônibus
Mas diga logo, tenho pressa
Uma brisa vai passar
Vai me apanhar
E vou desaparecer
Não dá mais, não posso esperar
Me diga o que sou, por favor
A noite cai em nossas cabeças. Estou em frente a um velho bar que fica na avenida principal da cidade e toda hora coloco uma moeda na jukebox. “You Dont Know Me” não para de tocar. Fico imaginando nós dois na cama em alguma madrugada fria do final de maio, lembrando das carícias que fazia em suas costas fartas e do café à moda italiana que você preparava em todo nosso desjejum juntos. Não era só a trepada, tinha todo o papo e um mundo completamente diferente que você fazia parte. Andava com os loucos e poetas, discutia arte, quadros, coisas que nunca tive tempo pra apreciar. E você fazia isso parecer tão prazeroso e fácil. E o prazer de ver seus olhos brilhando quando contava alguma de suas viagens sem destino, sem um puto no bolso e sabendo dos riscos que podia correr. Mas você é forte e sobreviveu a cada encruzilhada que passou.
Diferente de você, sempre precisei de uma muleta, de alguém pra me guiar. Talvez seja o resultado da criação da minha mãe, uma mulher incrível que sempre me deu apoio em tudo e estava lá quando precisei. Me ensinou errado, eu sei. Lembra daquela noite, sentados num bar com toalhas de mesa xadrez no lado sujo da metrópole? Você tava linda, na plenitude de sua beleza simples, mas forte. Desculpe-me pelo clichê que vou usar na sequência, mas era coisa de hipnotizar. Coloquei meu braço no seu ombro e tive certeza que era ali onde passaria o resto dos meus dias. Você não bebia, preferia ter ido em um café, algo assim. Mas a certeza que você era o porto certo pra amarrar o meu velho barco já usado por demais continuava. Mas, como em todo romance barato de banca de jornal, nosso caso não seria tão perfeito assim.
Você me levou até a estação, me deu a mão e disse que haveria uma próxima vez. No meio dos mendigos oprimidos, seu olhar desapareceu. Não imaginei que era o nosso último momento. Como uma brisa, você passou por mim e nem disse adeus. Apenas refrescou minha libido e colocou meu coração numa eterna prisão. E por mais piegas que possa aparecer, tudo que peço quando olho para uma lua cheia em uma noite qualquer é te ver outra vez.
Como já vi alguns velhos sábios dizendo, às vezes é necessário fingir que está tudo bem, enganar a nossa alma. Faço isso a todo momento. Ao mesmo tempo, enquanto a saudade faz do meu corpo um templo, fico torcendo esbarrar em você numa tarde quente de carnaval, enquanto os foliões bêbados dançam sem ritmo algum, diferente de ti. Quando você dançava tinha certeza que eu era capaz de te amar. Mas a vida é um mar de complexidade e talvez nasci pra perder.
Às vezes, na solidão da minha cama, coloco um velho CD no meu discman - é, ainda tenho um. Aretha Franklin, plena e em toda ternura, me faz imaginar sua solidão, seus momentos perdidos. Como ela diz na canção, seria uma vergonha você não dividir seu amor comigo, mas a vida é estranha assim. Fazer o quê, é necessário continuar andando. Mas chega por isso hoje. Você nunca vai saber o que rola aqui dentro de mim e nem tem a curiosidade de descobrir. Tudo bem, preciso colocar mais uma moeda na jukebox. Talvez uma balada monstruosa do Joe Coker me faça bem. Sabe, apesar de você não beber, um brinde a vossa mercê, baby blue. Que os ventos do sul levem minha prece bêbada ao seu lar e que atinja diretamente seu coração, como bala perdida em uma noite violenta. Qualquer hora dessa, entre a mudança de uma estação e outra, venha me visitar. Seria um prazer dançar minha última valsa com você, como naqueles dias frios de maio. Essa é a maneira que me lembrarei de ti pra sempre, fingindo estar em um velho romance de banca de jornal e dançando contigo ao som de“You Dont Know Me”.
Eram quase 15h30, a chuva não parava, a luz na empresa já tinha apagado duas vezes e o desespero bateu. Tinha medo de não conseguir atravessar a Av. do Estado e ficar ilhado na Zona Sul de São Paulo. Saiu do serviço, arrancou a camisa e com suas botas de couro enfrentou as poças altas que há no Ipiranga. Foi o segundo dia desse pequeno desafio. Enfrentando toda a tempestade, conseguiu atravessar a avenida e observou que o rio estava a ponto de transbordar. Chegou na estação de trem da região, os portões estavam fechados. Colocou sua camisa de volta e junto com outros usuários do transporte público, convenceu a funcionária da CPTM abrir os portões. Uma senhora gritou que ia chamar o Choque, a tropa de elite da polícia paulista, para abrir a passagem, mas ele a avisou e afirmou: "É mais fácil eles baterem na gente, querida!" Conseguiu entrar, mas foi impedido por dois seguranças ao acesso para o seu destino final. A desculpa era que havia confusão e teria que esperar. Nisso, um cidadão mais esperto do que ele, falou que morava do outro lado, depois do outro acesso. Ele ficou furioso e falou para o guardinha que se a regra valia para o cara, também era o correto pra todos. Conseguiu impor algum respeito e o guarda liberou o acesso ao outro saguão. Chegando lá, a situação era tranquila, diferente do relatado, e se agarrou a catraca, como se ela fosse a mulher mais sexy do mundo. Foram longas quatro horas de espera, uma ansiedade interminável, afinal, não havia trem. O saguão lotava mais, seu jeans molhado pesando quilos, nenhuma informação ou aviso da companhia responsável pelo serviço, mas ele viu que, na surdina, duas garotas passaram a catraca. Sua vontade de fumar era imensa e de ir embora dali mais ainda. Em um surto de segundos, ele se abaixou, chutou um dos cavaletes e conseguiu passar, não se importando com os guardas, nem com os funcionários. Se sentiu William Wallace, personagem de Mel Gibson em Coração Valente. Escutou a estação lotada vibrar e como um jogador de rugby, passou pelos guardas. Olhou para trás e viu a multidão fazendo igual. Um momento inesquecível, quase glorioso. Já na plataforma, acendeu seus cigarros e viu um homem que pega o mesmo vagão que ele há quase dois anos iniciar uma conversa pela primeira vez. Em cerca de 20 minutos o trem veio após a longa espera e, surpreendentemente, vazio. Se colocou ao lado da porta e ficou até ás duas estações seguintes, seu destino final."
(Escrito após uma chuva torrencial do ano de 2015)
Noites de tormenta
Uma busca a lugar nenhum
Rostos insones pela madrugada
Talvez eu seja mais um
Das nuvens negras lá no céu
Espero clemência e perdão
Me ajoelhando diante do nada
Por um momento de fé ou razão
Autopiedade nunca foi o meu forte
Mas às vezes sei o trapo que estou
Bebendo em todos os bares
Muito menos sabendo quem sou
Arrumo o meu óculos à la Mastroianni
Coloco um cigarro no canto da boca
Procuro nas avenidas escuras
Esbarro em uma multidão louca
E nos becos dos mendigos
Tento te achar com afinco
Mas nada consigo encontrar
Sei que você não está lá
Mesmo sem fé ou razão
Mesmo não querendo o perdão
Tentando acreditar em Cristo
Até mesmo, quem sabe, no destino
Continuo a te procurar
Mas na minha agenda de telefones
Seu número já não está
E cada dia do mês
Em cada sono profundo
Cada vez mais aflito
Fico tentando sonhar
Com o dia em que vou te encontrar
Terça-feira ensolarada e, mesmo com muito calor, consegui dormir bem. Preparo um café no meu pequeno quarto com cozinha. Hoje a tarde tem baile e preciso estar impecável. Me barbeio, aparo o bigode e passo minha roupa. Calça de vinco e sapatos brancos. Uma camisa preta, com algumas estrelas brancas para chamar a atenção na pista. Ainda dou pro gasto. Arrumo os últimos detalhes e mastigo o pão velho e duro que comprei na padaria do picareta de cabelos acaju, o velho Divino, mas, mesmo assim, me sinto ótimo, afinal, ela me esperará com a blusa florida que dei em seu aniversário e o perfume doce que fica impregnado em minhas camisas de seda. Essência de fêmea que domina o meu peito.
Nossa, agora que reparei: já passou da uma e meia e preciso ir ao ponto, são três conduções até o salão. Claro que no caminho há lembranças de outras mulheres, principalmente da minha falecida, mas após três pontes de safena, ver um filho morrer após um acidente, tenho que continuar, viver o presente. Ficar de enlutado, de pijama furado e com um riso triste assistindo os péssimos calouros do Raul Gil numa tarde de sábado não é pra mim, não basta. O sangue ainda pulsa e a ciência desenvolveu o Viagra. Apesar que prefiro o Cialis, é mais seguro. O médico não recomenda por conta do coração, mas prefiro morrer entre os peitos de uma mulher do que em uma cama de hospital rodeado com os poucos amigos que me restam e estão vivos.
Enquanto espero o trem, vejo os jovens, todos cheios de vida. Ah, como era bom. Mais do que bom, era mágico. Era um jovem namorador, que acreditava no amor romântico, daqueles de música do Roberto Carlos. “Eu sou aquele amante à moda antiga, do tipo que ainda manda flores”. É exatamente isso que ainda sou. Aquele jovem menino que pulava o muro do alambique e ficava embriagado durante a madrugada, para fugir correndo e descalço para a escola. O menino que admirava as curvas das panturrilhas grossas da professora Dete, uma jovenzinha de uns 21 anos, loira, linda, moça recém-formada. Ah, como prestei lindas homenagens a “Dona Dete”. Mas isso é passado e, apesar de feliz, não vale ser revisitado. O presente é o que importa. O cheiro daquela que me espera entrando em minhas narinas, ativando sentidos, trazendo gemidos até minha orelha, um movimento especial, sexy, enquanto ela mexe o quadril. Até parece que ao fundo um violonista flamenco sola ao fundo canções gitanas, daquelas feitas para requebrar. “Mercedita” talvez. Deixa isso pra lá. Fumo um cigarro escondido, já que ela não pode sentir o cheiro. Peço o isqueiro emprestado no meio do caminho, assim o vento vai levando o cheiro embora e não fico responsável por nada. Preciso comprar um presente pra minha rosa e acho que esse cordão dourado dá pro gasto. É apenas uma lembrancinha, só pra animá-la a dançar.
Faz dois anos que conheci ela. Tem 70 anos, é um pouco mais nova que eu, mas já puxou a faca pra mim algumas vezes. Sente um ciúme fodido, diz que sou seu homem, seu “nego”, o amor da vida dela. Não acredito nessas coisas, mas acho que devo aproveitar. Ela tava sentada num canto do salão, meio escondida. Fui lá e com toda minha malandragem, puxei pra dançar. A orquestra tocava um bolero. Acho que era Tortura de Amor. Realmente a noite estava calma, do mesmo jeito que o cantor entoava. Tive outras namoradas, fiquei noivo cinco anos com uma, mas quero sossego e, apesar do ciúmes, essa veio pra ficar. Tem umas donas lá que já me ofereceram casa, cama, diziam que pagavam tudo, mas não precisava e disse não, logo conheci ela. Perdeu tudo faz um tempo. O barraco foi derrubado pela prefeitura e eles não deram nenhum centavo. Dei cama, guarda-roupa e uma tábua de passar. Os armários da cozinha consegui com um amigo, Pago água de coco e guaraná, ela não bebe e eu parei faz tempo também. Viaja comigo sempre. Fomos em um baile em Salto. Ela até deixou uma carta pro vizinho dizendo que qualquer coisa, tava lá. Me acordava com café na cama, beijava, abraçava. Coisa louca, que me deixa cheio de vida, sabe? E dançamos a noite toda. O que a orquestra tocava, estávamos lá. Principalmente se fosse alguma do Ray Conniff.
Mas mil perdões, rapaz. Você vai trabalhar já e chegamos aqui na porta do baile. Preciso entrar, sabe como é, sempre pode ser o último. E não se pode desperdiçar um bom foxtrot, já que a vida é feita de danças, de movimentos contínuos, até mesmo intensos. O importante é manter o ritmo, o “dois pra lá e dois pra cá”, sempre com leveza e alegria, mesmo se errar. Sempre é possível enganar, rapaz. Fazer a dança certa. Mas me dá licença outra vez, o baile vai começar e ela tá me esperando, toda cheirosa, maquiada e hoje quero paz, ternura, como o velho romântico disse em uma canção. Bom trabalho e fica com Deus.
(PARA TODOS AQUELES QUE ESTÃO POR AÍ, PERDIDOS EM ALGUM BAILE DA VIDA)
Algumas músicas beiram a perfeição. É o caso de San Diego Serenade, presente em The Heart of Saturday Night, clássico de Tom Waits. Acho que se você ouvir, vai compartilhar do mesmo sentimento que eu sinto. A letra e música abaixo:
Nunca vi a manhã até ficar acordado a noite toda Nunca vi a luz do sol até você apagar a luz Nunca vi minha terra natal até ficar longe por muito tempo Nunca ouvi a melodia até precisar da canção Nunca vi o meio-fio a até te deixar pra trás Nunca soube que precisava de você até estar encrencado Nunca disse "Eu te amo" até te amaldiçoar em vão Nunca senti o meu coração até quase ficar insano Nunca vi a costa leste até mudar-me para o oeste Nunca vi o luar até ele brilhar fora do seus seios Nunca vi o seu coração até tentarem roubá-lo, roubá-lo de mim Nunca vi suas lágrimas até escorrerem pelo seu rosto Nunca vi a manhã até ficar acordado a noite toda Nunca vi a luz do sol até você apagar a luz Nunca vi minha cidade natal até ficar longe por muito tempo Nunca ouvi a melodia até precisar da canção
São 20h. Meu estômago ronca e resolvo jantar. Vou até a padaria perto do serviço fazer o ritual dos dias úteis. O garçom vem até a mim com um cardápio, mas hoje é desnecessário. Peço um contrafilé acebolado com fritas, já que na hora do almoço resolvi tirar um cochilo ao invés de comer, e um chá gelado de limão com um copo repleto de gelo e uma rodela do fruto. Fico no aguardo. É o tempo em que observo as mesas ao meu lado. Minha mãe me ensinou que é feio olhar os outros clientes de um restaurante, mas é irresistível – inclusive porque tenho a péssima mania de achar semelhanças entre rostos de populares e famosos. É um negócio difícil de controlar, mas um exercício maravilhoso para a memória. Observo a mesa no meu lado direito e há um sujeito que é a cara do ator Ariel Coelho, antigo coadjuvante de filmes do Ivan Cardoso, programas do Chico Anysio e novelas da Rede Manchete. Ele já está morto algum tempo, mas o sujeito sorri e penso: “É o cara”. Logo ele vai embora, com sua mulher e filho, mas eu mal podia imaginar o que ocorreria na sequência.
Adoro os filmes de John Cassavetes, principalmente os que contam com a participação de Ben Gazzara, um dos ícones da geração Actor’s Studio. Para quem não se lembra dele, ele é o Jackie Treehorn de O Grande Lebowski ou o Marcelo nova-iorquino e durão de Forever, do nosso Walter Hugo Khouri. Gazzara também interpretou Bukowski no ótimo Crônica de um Amor Louco. Mas o grande filme do cara, pelo menos para mim, é A Morte de um Bookmaker Chinês, do Cassavetes. Eis que, do nada, uma visão começa a me atordoar. Um homem, justamente a cara do Ben Gazzara entra na padaria acompanhado de duas moças já idosas, mas aparentemente ótimas para a idade. Elas estão vestidas como se voltassem de um baile, enquanto “Gazzara” veste um short dos New York Jets e uma camiseta básica. Foi como ver uma cena do filme, mas passada 42 anos depois, com todos eles envelhecidos. Faltava uma garota, mas quem já assistiu A Morte de um Bookmaker Chinês irá entender. Eles sentam a mesa, passam os olhos pelo cardápio e, como raramente os clientes dessa padaria que eu vou fazem, pedem uma pizza de oito pedaços. O sabor escolhido, para o meu espanto, é a siciliana. Será que há alguma conexão com a máfia na escolha? Talvez. Vou comendo o meu jantar e fazendo algo absolutamente errado, que é ficar de gaiato, só ouvindo a conversa dos outros. Eles falam sobre bailes, dança. Começo a achar que ele é realmente Cosmo Vittelli, o dono de um cabaré de Los Angeles interpretado por Ben Gazzara, um lugar onde muitas garotas dançam e tiram a roupa. Descubro que a dama de cabelo claro é sua namorada e que ela não frequenta o apartamento dele por conta das visitas constantes da filha de Cosmo. Hoje ele não quis beber e optou por um Guaraná Diet. Conheceu os prazeres da típica fruta tropical de nossa terra. Ele fala para a amiga que o acompanha, uma senhora de uns 70 anos e cabelos negros, do dia que saiu com a namorada para comer yakisoba. Desconfio que ele só esteja camuflando sobre a história que ocorreu com o bookmaker chinês.
Peço um café e fico observando mais um pouco, mas os últimos minutos da minha hora de janta estão acabando e preciso voltar para o trabalho. Saio da mesa e não resisto, dou a última olhada para aquela cena de John Cassavetes diante dos meus olhos, incluindo o super closes do diretor. Pago a minha conta e acendo um cigarro com uma única certeza: às vezes é divertido deixar a vida mais estranha que a ficção. Sobre o que aconteceu ao bookmaker chinês? É melhor deixar pra lá.